A menina que sabia obedecer (e agora tenta aprender a ser)
Um ensaio sobre as cicatrizes invisíveis da obediência, o peso das expectativas e a jornada, nem sempre suave, de aprender a ser quem se é.
Crescer, para alguns, é uma travessia ruidosa, feita de gritos, rebeldias e portas batendo. Para outros, é um longo e silencioso processo de domesticação. Eu fui do segundo tipo. Cresci com a pontualidade de quem cumpre tabela, com a precisão de quem sabe a cor, o tom e o volume exato de cada palavra que poderia dizer sem causar estranhamento. Fui a criança que sabia o lugar onde deveria estar, a resposta que deveria dar, o sorriso que deveria exibir. Fui a menina que sabia obedecer. E fui tão boa nisso que me tornei adulta antes da hora.
Enquanto outras crianças desenhavam futuros com lápis de cera, eu contava os riscos invisíveis de cada escolha. Calculava as reações, adivinhava as expectativas, antecipava os desejos alheios como se minha sobrevivência dependesse disso. Talvez dependesse.
A verdade é que, durante muito tempo, meu senso de valor foi medido na régua da aprovação. Meu mundo girava ao redor dos elogios disfarçados de sentença: “Que menina exemplar”, “Que responsabilidade para a idade”, “Um exemplo para os outros filhos”. Eu era uma pequena máquina de atender expectativas. E, como toda máquina, funcionava melhor quando recebia comandos claros.
Mas ninguém avisou que, com a idade, as regras ficariam turvas. Ninguém me preparou para a era dos subtextos, das entrelinhas e dos desejos implícitos que os adultos projetam sem confessar. Cresci achando que a vida era um manual de instruções e, quando percebi que era mais um campo de improviso, entrei em pane.
A maturidade, esse lugar que prometeram como porto seguro, revelou-se um terreno de incertezas. Ser adulta não é apenas pagar boletos ou cozinhar o próprio jantar, é ter de responder perguntas que ninguém faz, assumir posições que ninguém exige, criar uma identidade que ninguém te entrega pronta. E, nesse processo, um vazio profundo apareceu. Um buraco escavado pelas décadas de obediência.
Descobri, com um certo horror, que me tornei excelente em ser o que os outros esperam, mas completamente incapaz de saber o que eu mesma desejo. Me sinto como uma atriz sem roteiro, colocada de última hora no palco da própria vida. Improvisar me apavora. Mudar de planos de última hora é um convite ao colapso. A rotina virou meu colete salva-vidas, o planejamento minucioso a minha última ilusão de controle.
Há dias em que olho meu calendário como quem lê um salmo, buscando nele uma salvação. A previsibilidade é o cobertor que me protege do medo de ser. E é aí que mora a tragédia silenciosa: a constatação de que aprendi a sobreviver, mas não a existir plenamente.
Vivo num paradoxo cruel: o desejo de ser notada e o pavor de ser vista. A fome por admiração e a náusea diante da exposição. O anseio por destaque e o terror de não corresponder. Minha vida social é um jogo de esconde-esconde emocional. Quando sinto que estou à vista demais, recuo. Quando estou invisível demais, sufoco.
As sequelas de uma infância obediente são discretas, mas implacáveis. Não aparecem em diagnósticos formais, mas transbordam no trivial: na rigidez com horários, no desespero quando um compromisso fura, na ansiedade quando um plano escapa do controle. Minha mente virou um quartel, onde cada pensamento precisa de autorização prévia para se manifestar. Quando não há regra, eu não sei existir.
E o mais perverso de tudo é que o mundo aplaudiu essa obediência por tanto tempo que demorei a entender o quanto ela me custou. A submissão disfarçada de disciplina. O apagamento travestido de responsabilidade. A anulação mascarada de exemplo.
Hoje, enquanto tento, com mãos trêmulas, redesenhar as fronteiras entre o que sou e o que esperam de mim, entendo que a tarefa de me tornar adulta não terminou aos dezoito anos. Na verdade, só começou. Ser adulta, para mim, significa reaprender o básico: dizer não, errar sem pedir desculpas por existir, suportar o olhar dos outros sem desmoronar por dentro, e, talvez o mais difícil de tudo, ouvir minha própria voz e reconhecê-la como legítima.
Estou em processo. Às vezes me sinto um prédio em reforma: com andaimes expostos, paredes quebradas, e muita poeira emocional levantada pelo chão. Há dias em que me orgulho de cada centímetro de autonomia conquistada. Em outros, choro de exaustão por ter que desaprender tantas coisas que um dia me deram segurança.
Mas sigo. Com passos pequenos, tropeços constantes, mas uma fé teimosa de que, ao final desse processo, talvez eu consiga ser mais do que uma soma de expectativas alheias. Talvez eu me torne, finalmente, um projeto de mim mesma.
Porque ser adulta, no fim das contas, não é sobre ter controle.
É, talvez, sobre perder o controle com elegância. Sobre permitir-se não saber. Sobre suportar o desconforto de não agradar. Sobre entender que o amor verdadeiro, aquele que me devo e que mereço, não é um prêmio pela performance, mas um direito irrevogável de existir.
E se a vida me ensinou a ser exímia em cumprir papéis, agora eu me encarrego de rasgar alguns scripts.
E se um dia eu conseguir ser apenas o que sou, com a graça dos meus erros e a honestidade das minhas imperfeições, talvez eu consiga, enfim, descansar dessa eterna obrigação de agradar. Talvez, só talvez, meu maior ato de maturidade seja esse: me tornar, enfim, a adulta que a criança obediente jamais imaginou ser.